domingo, 24 de novembro de 2013

Jesuítas e índios Carijós em Laguna- 1605

COSTUMES DOS CARIJÓS (1605/1607- Padre Jerônimo Rodrigues)- Continuação- Parte 2

Relato de um missionário da Cia de Jesus, o padre Jerônimo Rodrigues, que consta em Novas cartas jesuíticas (de Nóbrega a Vieira-1940),  de Serafim Leite, (Pg 237,238,244,245) disponível online em http://www.brasiliana.com.br/obras/novas-cartas-jesuiticas-de-nobrega-a-vieira/pagina/233/texto

 Durante 2 anos , de 1605 a 1607, o padre permaneceu entre estes indígenas.
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CASAS E INSETOS

“As casas dos índios, como não haja terra, são todas de jeçara a pique. E da mesma maneira a nossa casa e igreja, que depois de seca, fica a casa tão clara, que não tem necessidade de abrir as portas. E assim dizíamos muitas vezes missa com a porta fechada, e comíamos sem abrir a porta, vendo da mesa quantos passavam e o mesmo nos viam de fora. E como os ventos cá são grandíssimos de dia nem noite estávamos sem ele.
Há nesta terra grandíssimo número de imundícias, bichos dos pés e muito mais pequenos que os de lá, de que todos andam cheios. E alguns meninos trazem os dedinhos das mãos, que é uma piedade, sem haver quem lhos tire. E um dia destes disse o padre a uma índia que tirasse os bichos a uma sua filha. Respondeu: çocoateim cece. E não lhos tirou. E nós também que estes dous anos bem os sentimos. Pulgas não se pode crer, se se não experimentar, como nós experimentamos estes dous anos, assim no verão, como no inverno, porque grande parte do dia, se nos ia em matar pulgas. E elas foram a perdição de nossas camisas e ceroulas, que pareciam as pintas do sangue delas como pele de lixa. E a mim me aconteceu, por curiosidade, contar as que em uma noite tomei em mim, às apalpadelas, e chegarem a um cento, e pela manhã, ao sol, matar no cobertor trezentas e sessenta e tantas, com cada dia as matar. Agora vejam que podiam fazer 460 e tantas pulgas, afora as muitas que fugiam. 
E daqui vinha a dizer o padre, que não havíamos de adoecer, polas muitas sangrias que as pulgas nos davam; mas eu, pelo contrário, dizia que elas tiravam o sangue bom, deixando o mau; mas não é de espantar haver tanta imundícia por tudo serem campos e areais, e haver infinidade de cães, de que estes são mui amigos, e principalmente da sujidade destes carijós, os quais aonde a vontade de oirinar os toma, aí o fazem, na rede, onde estão comendo, na porta, dentro em nossa casa, falando com homem, e muitas vezes nos nossos pés com as mãos e braços encruzados sem atentarem o que fazem nem se darem por achados de tal sujidade. E o que neste particular mais espanta é, que vem de sua casa para a doutrina, e vêm oirinar a porta da igreja; vêm do mar, ou de buscar lenha, e vêm oirinar no lumiar da porta; e vêm de sua casa para falar conosco, e vêm-nos oirinar à porta. E esta é a causa de haver tanta imundícia.

Além desta, há outra praga de grilos que nos destruíram os vestidos e livros, e são tantos, que matando cada dia grandíssima multidão, um dia por curiosidade quis contar os que tomamos e contei quinhentos e tantos; e ao outro dia creio foram mais, e se queria tomar 40 ou 50, As apalpadelas logo os tomava.
Mas sobre tudo isto, as baratas, que havia, não se pode crer, porque o altar, a mesa, a comida, e tudo, era cheio delas. E o padre todos os dias tomava na sua carapuça um monte delas e com armadilhas todos os dias tomávamos milhares e parece que sempre cresciam, até que chegou seu santiago, que foi dia de Nossa Senhora da Visitação que queimamos a igreja e assim pagaram.

 O MODO QUE TEM OS ÍNDIOS EM VENDER

Tanto que chegam os correios ao sertão, de haver navio na barra, logo mandam recado polas aldeias para virem ao resgate. E para isso trazem a mais desobrigada gente que podem, moços e moças órfãs, algumas sobrinhas, e parentes, que não querem estar com eles ou que os não querem servir, não lhe tendo essa obrigação; a outros trazem enganados, dizendo que lhe farão e acontecerão e que levarão muitas cousas; e outros muitos vêm por sua própria vontade, com suas peles, redes, e tipoias, para resgatarem com seus parentes o que tem necessidade. E a estes tais em pago de lhes trazerem de tão longe (que muitas vezes com a fome e cansaço morrem) o fio, redes, tipoias, e pelejos, vendem os Tubarões aos brancos. E os que vêm, apelidados pelos outros tanto que chegam ao navio, qual de baixo, qual de cima, o que menos pode dão com ele no navio. E assim vendem aos pobres com tão grandíssima crueldade sem lhe terem obrigação alguma. E podendo vender os tapuias, que tomam, antes os querem comer, e vender seus parentes. Depois que nós aqui chegamos houve algumas vendas lastimosas, um mocinho estava pescando para sua mãe, que vai agora conosco, veio por de trás um destes Tubarões e tomou-o, e foi vendê-lo; outro pediu um moço emprestado para lhe trazer um carrego ao navio, e, em pago disso, vendeu-o; outro vendeu dous filhos de sua mulher, que o mantinham e o serviam. E a pobre da mãe, quando isto viu, foi-se meter também no navio. Outro contentou-se de uma índia casada, e para a tomar para sua mulher, vendeu-lhe o marido.(...)

Este é o modo que se cá tem no comprar e vender almas, que custaram o sangue de Cristo. E estas são as consciências dos brancos que cá vêm. Mas de que nos espantamos? pois os religiosos e vigários e administrador e governador do Rio etc. mandam cá e com esta capa se defendem os que cá vêm, dizendo que têm mulher e filhos, e que, se os sobreditos cá mandam, quanto mais eles!...

E por esta causa nos pareceu in Domino não se poder fazer nada com estes, assim pola pouca ajuda que dos brancos temos, antes muita desajuda, como por estes estarem tão metidos nestas vendas e cobiças, e não termos força para os podermos sujeitar à lei de Deus, o que se pudera facilmente fazer se tiveram de quem haver medo, por ser gente coitada e acanhada.(...)”


Jesuítas e índios Carijós em Laguna- 1605

COSTUMES DOS CARIJÓS (1605/1607- Padre Jerônimo Rodrigues)

Relato de um missionário da Cia de Jesus, o padre Jerônimo Rodrigues, que consta em Novas cartas jesuíticas (de Nóbrega a Vieira-1940),  de Serafim Leite, (Pg 228 até 232) disponível online em http://www.brasiliana.com.br/obras/novas-cartas-jesuiticas-de-nobrega-a-vieira/pagina/233/texto 

 Durante 2 anos , de 1605 a 1607, o padre permaneceu entre estes indígenas, e possivelmente teria conhecido a região de Laguna e além dela, à qual se refere várias vezes.
Aqui vai copiado parte da sua carta.
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COSTUMES DOS ÍNDIOS

  “ Nosso exercício, logo em nos alevantando pela manhã, era termos nossa oração, fazermos nossas doutrinas, dizermos nossas missas; e dali até o exame tudo era matar pulgas e tirar bichos, sofrer descontos de carijós; e o mesmo fazíamos às tardes, tirando algum tempo que tomávamos para rezarmos algumas Ave-Marias, passeando ao longo da casa e de um quintalzinho, que tínhamos, sem nunca sairmos, nem irmos espairecer a nenhuma parte, estando em um campo, que somente víamos o céu e uns montes, que para quem tivesse muito amor de Deus, não lhe faltaria em que contemplar. As casas dos índios eram por todas cinco, depois de se ajuntarem alguns conosco; passavam meses e meses, que não entrávamos nelas, por não ser necessário.
A terra em si não é má.
Pode ter em comprimento desde Santa Catarina até Taramiandiba( Barra do Tramandaí), que está além de Boipitiba( Mampituba), onde os brancos também vão resgatar, 40 ou 50 léguas, ao longo do mar e ao longo de umas serras, que estarão do mar, meia légua, uma légua, até duas, em algumas partes; e dali por diante começam os Arachãs, parentes destes, mas temo-los por melhor gente, não na cobiça, mas na simplicidade. Estes, daqui dos Patos, são já muito poucos e parece, não durarão muito, conforme a pressa (apresamento pelos brancos-nota do autor) que os brancos lhes dão. Estes são parentes verdadeiros dos do campo, aonde morreram nossos Irmãos, e parece virem antigoamente para o mar, onde se comunicavam uns com os outros; mas de poucos anos para cá , se perdeu esta comunicação, não se sabe o porquê; mas suspeitamos que estes lhes fizeram algum agravo, e por isso não vieram mais. E como os que de lá vieram são já todos mortos, os que deles procederam não sabem dar notícia, nem é gente que tenha que saber para nada. É gente comumente de maior estatura que os de lá; andam cobertos com pelejos de coiros de veados ou de ratos d’água¹, tamanhos como pacas, mas não trazem estes pelejos por via de honestidade², senão por causa dos muitos frios, e dos grandíssimos ventos que todo ano há. São do tamanho de um cobertor pequeno; trazem-no às costas, e a dianteira descoberta. Quando não faz tanto frio, andam nus. As mulheres, grandes e pequenas, trazem tipoias³, e ainda que algumas vezes andam nuas, contudo, diante de nós, nem à igreja, vêm nuas, ainda que seja uma menina de 4 anos. É a mais pobre gente que cuido há no mundo, falo deste aqui, porque ele não tem coisa alguma, não tem algodão, nem pele, nem redes, nem tipoias, nem arcos, nem frechas, tudo isso lhes trazem os Arachãs; e daqui lhes vêm serem a mais preguiçosa gente que se pode achar, porque desde pela manhã até noite, e toda a vida, não têm ocupação alguma: tudo é buscar de comer,[e] estarem deitados nas redes. Em todas essas 50 léguas não há terra preta, nem vermelha, nem cá a vi, tudo são areais e de areia mui miúda. E ainda que há algumas serras e oiteiros, também são de areia , mas dá tudo o que lhe prantam. E como as árvores são pequenas e pau mole, facilmente fazem a sua roça, acabante de a queimarem, logo prantam sem fazerem coibara4, nem fazerem covas para a mandiiba5. Mas com o cabo de cunha, com que derribam a roça, fazem um buraquinho no chão e ali metem  o pau da mandiiba; e muitas vezes sem lhe fazerem buraco. E para uma índia meter um pau na terra dá sete ou oito ou mais pancadas com ele na terra ; e assim, machucado e ferido, o mete.
Tem o ano repartido em 4 partes, 3 meses comem milho, outros 3 favas e abóboras , outros 3 alguma mandioca, e os outros 3 comem farinha de uma certa palmeirinha, que é assaz de fome e miséria. E tudo isto lhes nasce de pura preguiça, e de se contentarem com comerem quanta sujidade há. As abóboras, aipins, batatas, comem com tripas, pevides6 e casca,e tudo quentíssimo. E por nenhuma via se lhes há de perder cousa que no chão lhes caia, ainda que seja um grão de milho ou feijão, ou grão de farinha: tudo hão de alevantar e comer, quer seja seu, quer alheio. Nenhum comer comem por gosto, senão por encher a barriga. E assim todos têm dentes danados7 por comer tudo quentíssimo e cheio de areia. Não comem mingau, nem pimentas, nem juquifaia, nem sal, com estarem junto do mar, e se lho dão do reino, comem-no. O peixe e a carne comem malcozido; cozem o peixe sem escamar, e sem-no lavarem, cozido em água chilra8. E é o peixe de cá ordinariamente tão magro que se o lançarem a uma parede pegara. Os pássaros, mal depenados, abrem-nos pelas costas, e sem os lavarem os põem sobre as brasas. E assim os comem. Há muita caça, mas de preguiça a não vão matar. Os dias passados indo à caça pelo campo, mataram duas antas; e logo lá, cada um por onde pode corta; e pedindo-lhe um índio um pedaço para nós, respondeu-lhe o senhor da carne:

   - Também eu tenho boca como os padres.

   E não-na deu.


VIDA SOCIAL

   De nenhuma qualidade convidam uns aos outros, nem ainda aos que vêm de fora. E assim quem há de caminhar há mister que leve com que compre o que há de comer, porque nem aos próprios parentes e da sua casa hão de dar nada sem troco. E dizem:
  - Vão-nos eles buscar.
         Não se ajudam uns aos outros; e bem pode um estar com um pau às costas, arrebentando, sem nenhum o ajudar, antes se estão rindo. E se lhes dizeis:
  - Vai ajudar aquele.
 Dizem-vos:
 - Tenho preguiça.

No vício da carne (sexo) são sujíssimos, têm muitas mulheres, têm as sobrinhas por mulheres, duas irmãs, suas madrastas, as filhas das mulheres, suas enteadas, têm também por mulheres, as netas, filhas de suas verdadeiras filhas, e alguns têm por mulheres as próprias filhas. E o que mais espanta [é] haver índia que têm dous maridos, e destas muitas; e ambos estão juntos com elas. E porque um destes se apartou de uma para casar com outra, o consorte teve mão nele para que a mulher lhe desse umas poucas já que se apartava dela para tomar outra. Outros há que deixam andar as mulheres por onde e com quem elas querem. Dizem que são angaturamas9. E por isso não fazem nherana. E outros que têm as próprias filhas, que fizeram, por mulheres.

FALTA DE LIMPEZA

   Em todas as cousas são sujíssimos. Na própria fonte, donde bebem, lavam os pés, lavam peixe e as redes. E não há uma hora que umas meninas foram à fonte, que está aqui pegada com o nosso tejupar10; e, vendo-as eu tornar sem água, por curiosidade fui ver a fonte, e estava cheia com uma sujíssima tipoia. E por aqui podem ver suas limpezas. Suas roupas, redes e tipoias lavam desta maneira: botam tudo no chão ou em cima de alguma pedra; e em cima uma pouca de cinza. E com água fria molham o que querem levar. E com os pés pisam muito bem, nem mais nem menos, do que pisam as uvas em Portugal e mais depressa. E depois a deitam a enxugar cheia de cinza. O seu fazer da farinha é ainda mais sujo; e se o não víramos com os olhos, muitas vezes, não-no crêramos, posto que nesta matéria de sujidade tudo se pode crer destes. E assim diz o padre que são muito piores que os tapuias.

   Não comem farinha ralada, nem tem espremedores, nem tatapecoabas, nem o sabem fazer. A mandioca, depois de estar podre, trazem-na da roça. E fazendo uma cova na areia, do tamanho de meio barril, fora da casa, põe-lhe umas folhas debaixo e ali a botam; e toda a que cai na areia com a mesma areia a botam com a outra; e quando cansam põem o pilão na areia; tornando a socar leva uma boa quantidade de areia, com outras sujidades que não são para escrever; e coberta com umas folhas e com areia a deixam daquela maneira, e pouco a pouco a vão tirando; e, pisando-a em um pilão, a desfazem e põem em uma urupema ao sol; e depois a cozem, mal cozida, e às vezes depois de cozida, vem pedaços tamanhos como a cabeça dum dedo, crus, que parecem minocurueras; e com tanta areia, que se não fosse a necessidade, ou se houvera outra, ainda que não tão boa, se não comera.
(...)”

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Notas da pesquisadora:

1- Provavelmente capivaras pela comparação de tamanho com as pacas.
2- Termo usado com o sentido de vergonha
3- As mulheres indígenas de algumas tribos usavam uma espécie de vestido de algodão chamado tipói, que é também o nome dado à tira onde seguram os filhos.
4- Coivara, termo que descreve técnica primitiva de plantação.
5- Mandiiva, mandiiba, mandioca.
6- Termo antigo para sementes.
7- Estragados
       8- Insípida, sem sal.
9- Pessoa nobre, honrada
10-Palhoça, cabana


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Nota ao último MAPA da viagem de Lisle-1797

Ao mapa da postagem do dia 16 de Novembro de 2013, quero acrescentar uma nota, referente ao comentário que fiz sobre os ingleses terem passado ou não pelo Rio Tramandaí.

Lendo o Roteiro de Domingos Filgueira, que deixou registrado que passou pelo Rio Tramandaí, em 1703, fiquei na dúvida se esse rio era tão fundo em 1797, época em que Lisle testemunhou ter passado pela região, quanto eu pensei. Fiz este comentário- ... que tem correnteza forte e é bem fundo, pois liga uma série de lagoas ao mar, fazendo a barra de Tramandaí -  e somente o fiz, pois conheço o rio pessoalmente. Tramandaí é a cidade de veraneio da minha família desde meus bisavós maternos e eu conheço aquela barra e rio tão bem quanto conheço a cidade. Mas a situação atual pode não ter sido a de 1797, assim como certamente não era em 1703.
Vou reproduzir o relato de Filgueira sobre este rio:

"...Passado o rio Grande se seguirá jornada sempre pela praia até chegar ao rio a que chamam Taramandabum (Tramandaí em nota do autor Capistrano de Abreu), o qual se passa à vau com água pela cinta em maré vazia , e pelo mesmo se vai continuando o caminho até chegar ao rio Iboipitiuhi (Mampituba em nota do autor Capistrano de Abreu) que com maré vazia se passa também à vau com água pela cinta;¹

Comparando com a descrição de Lisle, que foi a seguinte: "...Na manhã seguinte, cerca de dez horas, chegamos a um rio, que passamos a vau e, ao meio-dia, chegamos a umas  cabanas de pescadores nas margens do rio, perto de sua foz e fomos novamente obrigados a almoçar das nossas próprias provisões e, em seguida vadeamos o rio uma segunda vez. "

É possível que o rio passado à vau pela primeira vez, por Lisle, fosse o canal que liga as duas lagoas maiores que formam o sistema lacunar à beira-mar da região, pois ele diz que perto da foz do rio, o vadearam uma segunda vez. Perto da foz, era na barra, que é onde o rio é fundo atualmente.
De 1703 a 2013, dá um bocado de tempo, 310 anos, em que a situação do canal pode ter se modificado.
Portanto, fica feito o registro sobre a possibilidade do caminho percorrido por Lisle ser o caminho tradicional do litoral, afinal, percorrendo as trilhas e estradas ancestrais abertas pelos indígenas e depois
concretizadas pelos aventureiros, soldados e tropeiros que percorreram o território.


1- Fonte: Primeiros Cronistas do rio Grande do Sul,1605-1801 de Guilhermino César, 1998, pg 50.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Moradia em Vacaria- 1830

Como se lê na descrição do inventário* de Manoel de Souza Duarte, relacionado na postagem anterior (cuja mulher era Maria Rodrigues de Jesus, filha de Manoel Rodrigues de Jesus e uma das netas de José de Campos Banderbur, um dos primeiros sesmeiros de Vacaria e homens com mais posses da sua época), a sua casa na Freguesia de Vacaria, em 1830, era a seguinte:


Uma casa na freguesia coberta de telha, com 36 palmos de comprido e 29 de largo, com 3 portas com fechaduras e todas com dobradiças, 2 janelas com dobradiças, mais 2 portas com fechaduras. A dita casa é assoalhada só por baixo, é de pau à pique e os atilhos são de cipó , no valor de 80.000 réis. Com um “coarto”(quarto) para a rua com um “barcão”( balcão) de venda e “partileira” ( prateleira) com 4 tábuas, essa curta, e mais uma “partileira” de dentro com 2 tábuas e um catre de pouco feitio , tecido de guascas.

A casa era extremamente simples, mesmo para quem fazia parte de uma das famílias de mais prestígio na cidade.

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* Este inventário é um dos mais antigos, de vacarianos, encontrado no Arquivo Público do RS e um dos poucos dos herdeiros de Manoel Rodrigues de Jesus.
Quase tudo referente à Manoel Rodrigues de Jesus, sua mulher e seus filhos foi perdido, extraviado ou retirado do Arquivo. Pelos dados que outros pesquisadores reuniram  para reconstruir a história de Vacaria, como Manoel Duarte e José Fernandes de Oliveira, sabe-se que havia mais fontes, principalmente inventários, que foram se perdendo com o passar do tempo.
O material que eu consegui reunir nas minhas visitas aos arquivos, pretendo divulgar, aos poucos, para ser preservado e utilizado por quem se interessa. Peço apenas que seja utilizado e divulgado como fonte o meu Blog e meu nome, pelo imenso trabalho que demanda até chegar ao material postado aqui. Além das inúmeras visitas aos arquivos em Porto Alegre ( e não resido na capital ), é preciso ter o cuidado de transcrever exatamente o que está escrito nos documentos, procurar outras fontes para checar possíveis erros, e montar o material de maneira que fique apresentável.
Espero que este blog seja de utilidade a quem se interessa pela história de Vacaria e do Rio Grande do Sul.


Se alguém tiver algum material que possa complementar o que é postado aqui e quiser colaborar, é só entrar em contato, que será divulgado, com a devida autoria.

Inventários Vacaria

Manoel de Souza Duarte¹

Nota da pesquisadora- Existem 2 processos de inventário de Manoel de Souza Duarte, um feito em 7 de abril de 1830 e outro de 11 de maio do mesmo ano , com pequenas diferenças de conteúdo, sendo que o segundo contém a avaliação dos bens e, provavelmente, eram parte do mesmo processo de inventário, porém, arquivados separadamente, um está arquivado no fundo pertencente à cidade de Vacaria e o outro,  no de Santo Antonio da Patrulha. Os 2 autos apresentam-se com poucas folhas, desorganizados e mal feitos. São uma simples lista de bens e não contém as informações sobre o falecimento, nem sobre a partilha dos bens. Não existem folhas faltando.  Nesta transcrição, o material das 2 relações foi utilizado complementando-se as informações .

                                                                ***

Relação dos bens inventariados por falecimento de Manoel de Souza Duarte, morador desta freguesia de Nossa Senhora de Oliveira da Vacaria, pelo Juiz de Paz suplente Antonio Manoel Velho, como abaixo se declara:
Viúva- Maria Roiz de Jesus, de idade 60 anos².
Filhas: Manoela de Souza Rodrigues, 33 anos, casada com José Antonio de Castilhos
            Ignácia de Souza Rodrigues, 31 anos, casada com Urbano Antonio de Morais
Filhos: Alberto Roiz de Souza, casado³, 29 anos
            Manoel Antonio de Souza, casado4, 27 anos
            Theodoro de Souza Duarte, solteiro, 25 anos

Bens:
 1- Dinheiro em moeda: 144.800 reis
         2-Dívidas que devem à casa por créditos:
1-Leandro Luis Vieira- crédito de 1.525.000 reis
2-Antonio Manoel da Fonseca- 372.000 reis
3-Domingos Pereira Gomes- 200.000 reis
4-Iduardo José de Almeida- 103.200 reis
5-Manoel Roiz Borges5- 130.000 reis
6-Alferes Demétrio Morato- 202.000 reis
7-José Antônio dos Santos- 32.000 reis
8-Matheus de tal, cujo crédito para na mão do Procurador do falecido, Silvério Antonio de Jesus- 400.000 reis
9-Silvério Antonio de Jesus- 200.000 reis
10-José Maria de Sacramento- 14.000 reis
11-Felix de Campos6-12.800 reis
12-Domingos Pereira Gomes- 15.000 reis
13-Serafim Ferreira de Moura- 32.000 reis
14-Francisco Alvarez(ou Alves)-17.000 reis
              
                       
          3-Escravos:                                                                                   Valor
1-Pedro, de nação Masumbeque, de idade de 45 anos               153.000 reis
2-Vicente- de idade 50 anos                                                            153.000 reis
3-Joaquim, molesto de um “quarto”- de idade 48 anos               140.800 reis
4-José- 30 anos                                                                                  200.000 reis
5-Felipe- 20 anos                                                                                250.000 reis
6-João- 25 anos                                                                                  250.000 reis
7-Manoel- crioulo, de idade 4 anos                                                  76.800 reis
8-Justiniano- de idade 8 anos                                                          150.000 reis
           Escravas:
1-Margarida, mulata, enferma de dores reumáticas, de idade de 50 anos  100.000 reis
2-Ana- crioula, cabra- 18 anos                                                          200.000 reis
3-Guiomar- 5 anos                                                                                81.800 reis
4-Mariana, dita cabra- 7ª anos                                                          200.000 reis
5-Joaquina da Costa, enferma das “cadeiras”(quadril)- 45 anos      102.400 reis
6-Maria, crioula- 6 meses                                                                    25.600 reis

           4-Bens de Raiz
Uma Fazenda com 1 sesmaria de campo, com 1 légua de frente e 2 de fundos ,
                                                                                               no valor de  300.000 reis
Uma casa coberta de telha, com 38 palmos de comprido e 26 de largo, de pau à pique, e toda com cipó, com 6 portas com fechaduras, com cinco janelas, a metade assoalhada e forrada de tábuas,  com 25 anos de usada7,  no valor de 70.000 reis
E mais um lance de casa, de capim, coberta, com 2 portas, a metade assoalhada de tábuas, com 20 palmos em quadro ,situada na estância                                                             no valor de 20.000 reis
Uma casa que serve de paiol, também coberta de capim no valor de 16.000 reis
Uma lavoura cercada de taipa de pedra simples, com 200 braças
Outra lavoura cercada com 120 braças , mais inferior
Um curral maior e outro menor de madeira e cerca também de madeira, já antiga.
Uma casa na freguesia8  coberta de telha, com 36 palmos de comprido e 29 de largo, com 3 portas com fechaduras e todas com dobradiças, 2 janelas com dobradiças, mais 2 portas com fechaduras. A casa é assoalhada só por baixo, é de pau à pique e os atilhos são de cipó                                            no valor de   80.000 reis                                                                                                      

1 moinho de mão                                                                                   2.000 reis
2 carros já usados com seus aparelhos
1 arado usado                                                                                         980 reis
1 mesa já usada                                                                                     2.000 reis
1 mesa pequena                                                                                    2.000 reis
3 bancos compridos                                                    320 cada            950 reis
3 catres usados                                                           2.000 cada       6.000 reis
2 pares de canastras com ferraduras e 1 coberto de sola já velho
                                                                                 1.920 reis cada      3.840 reis
1 par de esporas de prata                                                                    16.000 reis
1 almario (armário) com chave já usado                                              4.000 reis
2 panelas de ferro grandes                                       1.280 reis cada  /  2.560 reis                          
2 panelas pequenas                                                       320 reis cada/      640 reis
2 pratos de estanho grandes                                         800 reis           1.600 reis
4 pratos pequenos já usado                                           320 reis           1.280 reis
1 bacia de arame pequena                                                                         640 reis
2 chapéus de sol usados                                               640 reis            1.280 reis
2 espingardas velhas                                                                              6.000 reis
1 alabanca(alavanca) de ferro                                                                2.000 reis
8 enxadas já velhas                                                      400 reis cada      3.200 reis
6 machados                                                                    400 reis cada    /2.400 reis
4 tonéis já usados                                                                                     1.920 reis
1 enxó  chata de mão                                                                                   640 reis
1 enxó goiva                                                                                                 640 reis
2 serras de mão                                                              32 reis cada           64 reis
1 formão grande                                                                                         800 reis
1 formão pequeno                                                                                      400 reis
1 machado de carpinteiro                                                                           960 reis
2 plainas                                                                        320 cada                 640 reis
3 escapelos – 1 grande e 2 pequenos
2 juntores                                                                      320 cada                 640 reis
2 compassos                                                                320 cada                  640 reis
1 berruma(verruma) de cravilhar                                                                100 reis
3 berrumas pequenas                                                  60 cada                   180 reis
1 martelo de orelha                                                                                      400 reis
1 cantil                                                                                                            60 reis
1 mesa grande sem gaveta                                                                     1.600 reis
3 bancos curtos                                                             400 cada        /  1.200 reis
2 cabides curtos
1 taxo(tacho) velho já furado                                                 
                  
                   5- Animais:
153 éguas xucras                                                          1.280 cada (195.840 reis)    
15 potros                                                                       1.600 cada (24.000 reis)
6 mulinhas de marca                                                     6.400 cada  (38.400 reis)
5 potros pastores                                                           2.000 cada (10.000 réis)
20 mulas mansas – 8 velhas a 10.000 cada e 12 a 16.000 cada      (272.000 réis)
26 cavalos mansos- 8 velhos a 3.000 cada e os outros a 5.000 cada  (114.000 reis)
4 cavalos redomões                                                      4.000 cada(16.000 reis)
42 éguas de manada de burro                                     3.450 cada (144.900 reis)
2 burros echorres(chorros)                                                                  64.000 reis
2 burras                                                                           1.600 cada     3.200 reis
1 burrinho  de campo                                                                           4.000 reis
71 vacas mansas                                                            4.000 cada (284.000 reis)
62 terneiros para marcar                                                1.000 cada (62.000 reis)
44 touros                                                                         3.000 cada (132.000 réis)
41 novilhas                                                                     5.000 cada (205.000 reis)
151 reses  de toda qualidade(raça)                              3.000 cada (453.000 reis)
18 bois mansos carreiros                                             10.000 cada (180.000 réis)
47 ovelhas                                                                           480 cada (22.560 réis)
                                                           ***
A herdeira Manuela recebeu quando casou com José Antonio:  (dote)
50 éguas a preço de 1.280 reis cada(64.000)
50 ovelhas a preço de 480 reis cada(24.000)
3 vacas mansas  a 4.000 cada(12.000)
3 cavalos mansos a 5.000 cada(15.000)
2 cavalos pastores a 2.000 reis cada (4.000)
12.000 reis de um crioulinho que mamava.
                                                                          Total- 127.000 réis

A herdeira Ignácia, casada com Urbano recebeu:  (dote)
50 éguas a preço de 1.280 réis cada(64.000 reis)
50 ovelhas a preço de 480 reis cada(24.000 reis)
3 vacas mansas  a 4.000 cada (12.000 reis)
3 cavalos mansos a 5.000 cada(15.000 reis)
2 cavalos pastores a 2.000 reis cada(4.000 reis)
12.000 reis de um crioulinho recém-nascido
                                                                         Total- 127.000 réis

E como se procedeu o dito inventário na presença do dito Juiz de Paz e da viúva Maria Rodrigues de Jesus, os herdeiros presentes e o inventariante Alberto Roiz de Souza, todos assinaram perante mim, escrivão ,que dou fé.  Estância da Boa Vista, Termo da freguesia da Nossa Senhora da Oliveira, em 7 de abril de 1830.
Assina o escrivão Francisco de Paula Nery, o juiz Antonio Manoel Velho , José Rodrigues de Jesus9, Francisco Borges Pereira10,  Maria Rodrigues de Jesus11, Antonio Roiz de Souza , Theodoro de Souza Duarte e como procurador de Manoel Antonio de Souza, assinou o irmão Theodoro e Urbano Antonio de Morais. Não assinou nenhum representante da irmã Manoela, moradora de São Borja.

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Notas:
1-     Manoel de Souza Duarte era genro de Manoel Rodrigues de Jesus, primitivo povoador da freguesia de Vacaria. Pelos bens relacionados no inventário, o que possuíam de maior valor era a terra e o gado. O inventário foi deixado inacabado, sem as somas referentes à avaliação de todos os bens, nem montante da herança, nem a partilha pelos herdeiros. A soma total dos bens foi completada pela pesquisadora, aparece entre parênteses.
2-    Maria Rodrigues de Jesus, consta 66 anos de idade no processo arquivado em Sto. Antonio da Patrulha e 60 anos no outro processo. Não temos outra fonte disponível em que conste sua idade. Teria casado em 1786, conforme informação de Theodoro Carneiro Duarte, em seu livro;
3-     Casou com Inês Ribeiro
4-     Casou em primeiras núpcias com Prudência Ana de Jesus e em segundas com Gertrudes Leme de Souza Vieira, em 1845, o segundo casamento , portanto, após o inventário
5-     Manoel Roiz Borges- Casado com uma sobrinha (Balbina Vieira Borges) da viúva Maria Roiz de Jesus.
6-     Félix de Campos, cunhado da viúva Maria Roiz de Jesus.
7-   Portanto, foi construída em 1805
8-     Junto à esta casa da freguesia, na primeira relação  estava anotado o seguinte: Um “coarto”(quarto) para a rua com um “barcão”( balcão) de venda e “partileira” ( prateleira) com 4 tábuas, essa curta, e mais uma “partileira” de dentro com 2 tábuas e um catre de pouco feitio , tecido de guascas. Certamente havia uma adaptação na casa para a peça da frente ter outra serventia além de quarto, pois o escrivão anotou o número de prateleiras e o balcão de venda, podendo servir como uma espécie de quarto de hóspedes com saída para a rua ou até armazém improvisado.
9-10-Irmão e cunhado da viúva, deviam ser os avaliadores dos bens no inventário, embora não apareça juramento ou nomeação dos mesmos, pois na primeira relação é citada a presença dos avaliadores.
11-A assinatura da viúva é com letra bonita e legível, ao contrário da letra dos filhos, o que era raro de ver naquela época. Pouquíssimas mulheres sabiam sequer assinar o nome, quanto mais ler e escrever.

No segundo auto, assinam o escrivão , o juiz suplente, a viúva, e os herdeiros Alberto e Manoel. Não havia assinatura dos 3 filhos restantes ou seus procuradores.
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Nota- Mais informações sobre este assunto no Arquivo Público do RS/ APERS, fundo Inventários.
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sábado, 16 de novembro de 2013

Mapa atualizado da rota da viagem de Lisle - Mostardas à Laguna - 1797


Esta é uma das prováveis rotas usadas por Lisle até Laguna. Esta rota específica percorre, de Mostardas à Laguna, 585 km, em uma viagem de pouco mais de 9 hs (de carro).
Como Lisle não citou pontos de referência específicos,( como no primeiro mapa do caminho até Mostardas), fica mais difícil estabelecer com exatidão o caminho percorrido.

O início deste mapa foi na cidade de Mostardas, o ponto A. Como não seguiram para o norte pelo litoral, devem ter se desviado para noroeste, na direção de Palmares e Capivari, antigos vilarejos existentes na rota entre Viamão(à leste) e Rio Grande (ao sul).
O ponto B é Capivari do Sul
O ponto C é Osório
O ponto D é Torres
O ponto E é Laguna

Existia mais de uma trilha para fazer o trajeto entre a vila de Rio Grande e Laguna. 
Lisle não descreveu a guarda de Tramandaí( RS), por isto fica a dúvida sobre a rota percorrida e o exato local por onde ele passou.  A única descrição feita refere-se ao momento em que passaram o rio a vau, isto é, à pé ou montado no cavalo,onde o rio não seria fundo o suficiente para o cavalo passar nadando, portanto, não poderia ser muito fundo (6º dia de viagem) e Lisle não citou o nome do rio, nem da localidade.
Pela sua descrição, do 4º ao 7º dia de viagem, onde ele relata haver montanhas, percebe-se que o trajeto foi acompanhando a Serra Geral – “...de um lado, a visão é limitada por montanhas, e por outro lado, abre-se para um grande horizonte, onde bosques, lagos e rios são um alívio charmoso um para o outro.” A esta altura, a partir do 4º dia, eles deveriam estar na altura de Santo Antonio da Patrulha ou Osório, lugar onde começa a aparecer a cadeia de montanhas com alguma altitude, o início da Serra Geral, perto da rota que eles fizeram e que acompanha, a partir daí, a uma certa distância, a costa do litoral até Santa Catarina.

O primeiro trecho da viagem, mostrado no primeiro mapa, era de 155 km, percorrido em 2 dias e meio. Este segundo trecho, de cerca de 550 km(em média), levou 4 dias e meio até Torres e mais 4 dias até Laguna , mais um dia até Garopaba e depois disto mais 7 hs de navegação por mar até a ilha . Explica-se o tempo maior de viagem pelo terreno mais difícil e acidentado (areias e montanhas) que foi percorrido.

No Compêndio Noticioso, de Francisco João Roscio, em viagem pelo Rio Grande, de 1774/75, existe a descrição do caminho feito inteiramente pelo litoral. 

Viagem por Santa Catarina- de J.G.Semple Lisle- 1797

Parte 10- Cap XXII- (Pg 259)
Chegada à Ilha de Santa Catharina  e Viagem ao Rio de Janeiro-Resumo

Neste capítulo os ingleses chegam à ilha de Florianópolis, e Lisle, como de costume se dirige à autoridade local - o governador de SC - a quem entrega uma carta de recomendação do Governador do RS, e diz que deseja, se possível, seguir viagem, por terra ou mar, imediatamente para o RJ e o governador informa que dois dias antes tinha chegado do Rio de Janeiro uma esquadra de 4 navios comandados pelo Almirante Antonio Januário do Valle que talvez pudesse levá-lo, ( o que mais tarde realmente acontece.)
Ele descreve a recepção ao almirante pelas forças militares da ilha, como segue:
“ ... Não apenas a guarnição da cidade, mas toda a milícia da ilha, e ainda um batalhão de infantaria ,o qual em marcha para o Rio Grande, foram reunidos e formados em duas linhas para a recepção à Sua Excelência. As tropas faziam uma bela figura, todos bem vestidos e a cavalaria, especialmente, confirmou a opinião que eu havia formado no Rio Grande. O uniforme da milícia das ilhas , ambos da cavalaria e infantaria é azul brilhante , eles são robustos, homens bem feitos e os cavalos são até melhores do que os de Rio Grande. Isto se deve ao fato de serem alimentados com milho, o que não acontece com os de Rio Grande, a não ser que sejam domesticados e acostumados à isto.”
Eles permaneceram 3 semanas na ilha, que ele descreveu da seguinte maneira: “ A ilha de Santa Catharina é muito fértil e poderia, com um pouco de dedicação, se tornar um lugar mais produtivo , mas é tão grande a preguiça dos seus habitantes, que pouco ou nada é feito por eles, até o gado para o mercado é trazido do Rio Grande.”
Em 4 de novembro eles partiram para o Rio de Janeiro, onde chegaram no dia 18 do mesmo mês. Portanto, a viagem de navio entre as duas cidades durava 14 dias.

O resto da viagem não é de interesse do assunto proposto e não será traduzida, mas contém informações peculiares para quem gosta de história.
Como Lisle era estrangeiro e não conhecia os lugares por onde passou, deixou de dar informações mais detalhadas a respeito de lugares, nomes e moradores, que fazem falta para completar lacunas da viagem.
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The Life of Major J. G. Semple Lisle, por J.G.Semple Lisle- 1797
London, Printed for W. Stewart, No. 194, Opposite York House, Piccadilly, 1799
O livro está disponível digitalmente , em versão original em inglês. https://archive.org/details/lifemajorjgsemp00sempgoog

Tradução livre feita pela pesquisadora.

Viagem pelo RS de J.G.Semple Lisle- 1797

Parte 9- Continuação do Cap XXI 
Descrição da viagem por Santa Catarina

12º dia de viagem

Na manhã seguinte saímos para Laguna.
Aqui encontramos as únicas montanhas, exceto aquelas de Torres, que fomos obrigados a atravessar. Nós passamos várias montanhas de areia, de grande magnitude e, finalmente atingimos um precipício de rocha, onde começamos a achar que nosso guia tinha se perdido. Estávamos relutantes em voltar para a estrada pela qual tínhamos vindo, portanto nos esforçamos para encontrar algum lugar onde a descida fosse possível e encontramos um que era toleravelmente seguro, então desmontamos e levamos os cavalos descida abaixo, seguindo à pé. Conforme nos aproximávamos de Laguna, a paisagem ficava com uma aparência montanhosa e selvagem. Tivemos muita dificuldade em encontrar o caminho certo, entretanto, em seguida, depois de cruzar um imenso prado, alcançamos o rio, na barra do qual, no lado norte, está a cidade de Laguna. Os cavalos que nos tinham fornecido parariam aqui. Nós nos vestimos debaixo de uma árvore, enquanto a canoa era aprontada para nos levar à cidade. Antes de atingirmos o rio que leva à barra, nós tínhamos que passar por uma lagoa¹ que era muito ampla, calma e rasa. O rio, ao contrário da lagoa, é muito profundo e a corrente, em alguns lugares, muito forte. Depois de atravessarmos a lagoa, travessia que durou mais ou menos 1h e 30 min, nós chegamos ao porto, que encontramos cheio de pequenos barcos, muito bem construídos e parecia ser um lugar cheio de comércio para todo lado. Fomos conduzidos imediatamente ao
Comandante, que nos hospedou muito bem e nos deu atenção de uma maneira muito agradável.

Laguna é uma pequena vila, mas bem construída e as pessoas se vestem bem e parecem viver em grande abundância. As paisagens ao redor são extraordinariamente bonitas, e tudo parece conspirar para tornar o lugar rico e florescente.
Em Laguna dispensamos nossos soldados e índios, pelos quais escrevi uma carta de agradecimento ao governador do Rio Grande, agradecendo todos os favores que recebemos dele e de sua guarnição. Ao mesmo tempo, assegurei- lhe que nossa jornada, em vez de abundantes dificuldades, tinha sido extremamente agradável e divertida. Se tivesse sido capaz de prever os inconvenientes que encontraríamos no dia seguinte, talvez não tivesse escrito de maneira tão otimista.

13º dia de viagem

Em Laguna pegamos novos guias, que, como os anteriores, eram soldados; também tínhamos novos cavalos e na manhã de domingo, 16 de outubro, recomeçamos nossa jornada. Ao meio-dia chegamos à Vila Nova², um vilarejo muito bonito, situado na lateral de uma montanha, onde descansamos durante o calor do dia, e então, de novo, mudamos de cavalos e de guias, e apressamo-nos para os novos acontecimentos que viriam. Nosso caminho passava por imensas florestas, e a passagem era tão estreita que impedia duas pessoas de andarem lado-a-lado. Em muitos lugares, era até estreito demais para um. Mr. Black, uma ocasião, ficou literalmente emperrado entre duas árvores, o que requereu nossos esforços conjuntos para desentalá-lo. Em vários lugares a estrada era tão íngreme que, mesmo com o pensamento vaidoso de que eu era um cavaleiro habilidoso, tive dificuldade de manter-me na sela. E isto não era tudo, como a parte superior das árvores era tão pendente e baixa pelo caminho, que por muitas horas, fomos forçados a inclinar-nos sobre o pescoço dos nossos cavalos e desta maneira dolorosa tivemos que subir e descer precipícios. Nós cavalgamos com um estranho fundo musical; o rugido de diferentes feras selvagens e o silvo de serpentes eram ouvidos a todo momento; mas, apesar de termos tirado esta conclusão baseados na horrível convicção de que eles estavam perto de nós, nunca avistamos nada.
Apesar da marcha fatigante e incômoda, chegamos, pouco depois do pôr do sol, a um porto de pesca de baleias³, situado à cerca de 11 ou 12 léguas de Sta.Catharina4 . Aqui fomos gentilmente recebidos pelo superintendente , aparentemente um homem inteligente. Ele morava em uma excelente casa, a melhor que eu vi até agora neste país; Caminhando, mostrou-nos todo o trabalho e construções pertencentes ao lugar e pelas reclamações que ele fez sobre os pescadores de baleia britânicos, parecia que este lugar - para seu prejuízo- sentia os efeitos da indústria pesqueira dos meus conterrâneos. Aconselhado por ele, concordamos em seguir daqui para Sta Catharina5 em um dos seus navios baleeiros, desanimados com a sua descrição da estrada a percorrer, que ele disse ser bem pior do que aquela que passamos.

14º dia de viagem


Deixamos o porto pesqueiro cedo na manhã seguinte e cerca de 2hs da tarde atingimos o nosso lugar de destino. Esta passagem pela beleza ultrapassa tudo que eu tenho visto e ouvido; situada entre uma cadeia de férteis montanhas, a costa inteira, em ambos os lados parecia um laranjal. Na nossa passagem fomos persuadidos a parar em uma fazenda, para um agradável descanso e lá as pessoas carregaram nosso barco com ótimas laranjas.

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 Notas da pesquisadora:
1-     Lagoa de Santo Antônio
2-   Freguesia de Santa Ana de Vila Nova passou à categoria de distrito de Santo Antônio dos Anjos de Laguna, com o registro que consta na Carta Régia (de Portugal) em 11 de novembro de 1797. Esse distrito compreendia os povoados de Imbituba, Vila Nova e Mirim. Os moradores, a maioria açorianos, dedicavam-se à pesca no mar e na lagoa; cultivavam o linho, a cana, o trigo, a mandioca, o milho; criavam ovelhas e fabricavam açúcar, aguardente, melado, tecidos de linho e lã. A freguesia teve as mais antigas igreja e escola da comunidade. Até 1747, havia apenas uma capela de pau-a-pique, coberta com palha. Anos mais tarde, o Rei de Portugal, Dom João V, autorizou a construção de uma igreja em melhores condições. Através de um “Alvará Régio”, em 1° de março de 1753, autorizou a criação da paróquia e o término da igreja em 1765. O templo apresenta paredes de um metro de espessura, pedra sobre pedra, com abundante argamassa de barro, areia e óleo de baleia, resultado de um trabalho rude, exaustivo, executado pelos negros escravos e açorianos.
O primeiro vigário, segundo registro em velhos livros de batismo, iniciados em 1752, foi o Padre João de Borba Fagundes. Em 1756, foi substituindo pelo Padre Francisco José de Araújo Bernardes, que permaneceu até 1761, exercendo o cargo “forâneo”, isto é, vigário de Vila Nova e de Laguna, simultaneamente.
3-    Provavelmente Garopaba, povoado criado em 1793, com nome de Armação de São Joaquim de Garopaba.
4,5- Ilha de Florianópolis
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The Life of Major J. G. Semple Lisle, por J.G.Semple Lisle- 1797
London, Printed for W. Stewart, No. 194, Opposite York House, Piccadilly, 1799
O livro está disponível digitalmente , em versão original em inglês. https://archive.org/details/lifemajorjgsemp00sempgoog

Tradução livre feita pela pesquisadora.