quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Viagem pelo RS de J.G.Semple Lisle- Introdução

Parte 1-Introdução. A história do motim*

O episódio do motim foi investigado pelo casal de ingleses Peter e Patrícia Wright, em 2009, que descobriu pormenores do acontecido, principalmente sobre o destino dos amotinados e prisioneiras depois que chegaram a Montevidéo.

O navio onde tudo aconteceu, o Lady Shore, foi contratado para servir como navio-prisão. Era um grande veleiro de transporte de tropas e prisioneiros, com 316 toneladas de peso e armado com 20 canhões para defesa. Deixou o porto inglês de Kew, em 8 de junho de 1797, com carga formada por prisioneiros da Coroa Britânica. Ele carregava nos porões 68 condenados – dois homens e 66 mulheres. Todos tinham sido sentenciados na Inglaterra a penas que variavam de sete a 14 anos de reclusão ou desterro por toda a vida na Austrália, que na época era apenas uma ilha que funcionava como colônia penal britânica.
As condenações eram extremamente severas, se confrontadas com os modernos padrões legais. Uma mulher que furtou duas colheres de chá feitas em prata, por exemplo, recebeu sete anos de reclusão. Outra garota, de 14 anos, recebeu pena de prisão perpétua por furtar roupas de um patrão idoso. Havia também casos de homicídio, de mulheres que mataram os companheiros. Elas receberam pena de morte, mas como opção à forca lhes foi oferecido cumprir sentença perpétua na longínqua Austrália. O Major Lisle, apesar de militar, era um dos condenados a viajar no navio-prisão. Ele foi sentenciado por aplicar golpes por toda a Europa. Dominava vários idiomas e atuava como intérprete, quando foi condenado. Usou dessas habilidades para negociar com os amotinados, mas acabou lançado ao mar com a tripulação do Lady Shore.

A tripulação do navio não era muito diferente de Lisle. Os 70 recrutas do Corpo de Guardas de Nova Gales do Sul (província australiana) foram descritos pelo armador do barco, John Black, como “o mais desagradável e rebelde grupo de vilões que jamais ingressou num navio”. Existia um grupo de soldados ingleses aprisionado por cometer faltas graves – dois dos sargentos se comportaram tão mal que entraram no navio acorrentados. Outros seis soldados também ingressaram algemados, pois estavam sentenciados a servir num regimento em Nova Gales do Sul para toda a vida – e isso não lhes agradava. O restante eram prisioneiros de guerra capturados nas batalhas napoleônicas: franceses, suíços e alemães forçados a ingressar, contra sua vontade, no Exército inglês. Por fim, a tripulação era formada ainda por um grande número de presos políticos irlandeses, “republicanos que odiavam tudo que fosse inglês e monárquico”, nas palavras de Black.
Em seu livro, o armador John Black, co-proprietário que viajava no navio, assinala alguns erros que podem ter facilitado o motim. Um deles é que o número de estrangeiros forçados a servir no Corpo de Guardas do navio era similar ao de ingleses. Outro é que esses soldados-prisioneiros tinham direito de carregar armas de fogo e considerável quantia de munição.
Em 1º de agosto, quando o Lady Shore estava cem léguas a nordeste de Cabo Frio (Brasil)  eram 4h, quando o imediato, Mr. Lambert, viu homens carregando os mosquetes e tentou sacar suas pistolas. Foi atacado com baionetas e recebeu tiros, vindo a falecer minutos depois. O capitão Willcocks não teve melhor sorte, foi baleado, perfurado e teve o pescoço cortado pelos rebelados. No tiroteio, dois rebeldes franceses também morreram. Black tentou se refugiar em seu camarote, mas acabou se rendendo aos amotinados, assim como William Minchin, comandante do Corpo de Recrutas, e o Major Lisle – que, apesar de prisioneiro, se fizera muito amigo dos oficiais do navio. Os três, outros oficiais, suas mulheres e filhos foram mantidos aprisionados durante duas semanas. O líder dos rebeldes, um francês, justificou a rebelião pelo fato deles, estrangeiros, terem sido forçados a ingressar no Exército britânico (inimigo), contra sua vontade e contra seus princípios republicanos.
O Lady Shore dos amotinados prosseguiu viagem até Montevidéu , na época um porto espanhol. O problema é que a Espanha era inimiga da Inglaterra, nas guerras napoleônicas. De pouco adiantou os 70 amotinados dizerem que eram prisioneiros de guerra dos britânicos. Os espanhóis os cercaram e os enviaram à cadeia. Alguns permaneceram encarcerados por anos, outros foram libertados logo e deles não se teve mais notícia.
A sorte das mulheres que iam para a prisão e foram libertadas pelos amotinados do Lady Shore mudou para algumas e para outras não. As condenadas por crimes comuns na Inglaterra tiveram destino mais brando do que a prisão; as mais bonitas, conforme arquivos existentes em bibliotecas uruguaias, teriam sido doadas como servas para as casas abastadas dos fazendeiros uruguaios e argentinos. Outras, com menos sorte, teriam ido parar em casas de prostituição.

Quanto a Lisle e a tripulação de oficiais e náufragos do Lady Shore, eles só deixaram o porto de Rio Grande meses depois. É que nenhum navio de porte passava por ali e os ingleses estavam, literalmente, abandonados à própria sorte. Black e Lisle decidiram então, viajar à cavalo até a Ilha de Santa Catarina ( atual Florianópolis), onde havia um porto mais movimentado. Ganharam dos lusitanos 50 cavalos, dois soldados e um índio. Viajaram por terra até Laguna e, dali, rumaram para um porto baleeiro no sul da Ilha de Santa Catarina. Ali foram recebidos pelo governador, que designou-lhes apartamentos em seu próprio palácio. Conseguiram então carona num navio português em 9 de novembro até o Rio de Janeiro, onde chegaram 10 dias depois. Lá acabaram encontrando o comandante do Corpo de Guardas do Lady Shore, Minchin, que conseguira sair de Rio Grande num navio e chegar antes.

*Divulgado no site  http://defender.org.br/2009/04/18/rebeliao-no-atlantico-sul/  Defender – Defesa Civil do Patrimônio Histórico

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