sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Viagem pelo RS de J.G.Semple Lisle- 1797

Parte 5 - Cap XX (pág 229)
Descrição da Província do Rio Grande e sua incomum hospitalidade.

No meio de setembro, o General Sebastião Xavier da Veiga Cabral e Câmara recebeu uma carta do governador de Montevidéo, estabelecida no lado norte do Rio da Prata , relatando que um navio inglês havia sido levado até lá por amotinados, que o nome do navio era Lady Shore, com soldados britânicos e mulheres condenadas, que o francês que o comandava declarou que tinham se revoltado em consequência de terem sido forçados a servirem como soldados, que eles tinham se tornado mestres do navio perto de Rio Grande e neste processo o capitão, o imediato e um soldado foram mortos e que eles tinham lançado um bote ao mar, com todas as coisas necessárias, com um major, dois oficiais de tropa, dois do navio e vários outros, a alguma distância do Rio Grande.
O governador de Montevidéo expressou sua grande satisfação ao saber que todos tinham chegado salvos à praia e solicitou ao General, caso estivessem na sua companhia, que os ingleses se empenhassem em enviar um relatório do ocorrido, e, acrescentou ele que estava ansioso por isto, pois ele poderia confiar no relatório dos ingleses, e pensava que não poderia fazê-lo no dos amotinados.
Foram então feitos 2 relatórios, um pelo oficial Michin e outro pelo armador e comissário de bordo, John Black.¹ 
(...)
A província do Rio Grande estava localizada aos 6 graus de latitude sul e a 34 graus de longitude oeste; o solo era extremamente fértil, produzindo todas as coisas com abundância e com tais coisas seus habitantes eram supridos; de fato, o luxo das pessoas abastadas era excessivo, não como seria de esperar em um lugar quase ermo, separado do resto do mundo.
A vila de São Pedro (Rio Grande) estava situada há 4 léguas a partir da barra do rio, do qual a província tomou seu nome. Era, na maioria, de madeira, mal construída, dispersa, com muito poucas boas casas; existiam 2 ou 3 que consistiam em mais de 1 andar. A casa do governador era pequena, mas conveniente, situada inteiramente em um plano militar. Consistia de uma suíte de apartamentos , todos ao nível do chão. Havia uma bonita catedral, com muitos estabelecimentos adequados, e,  supunha Lisle, que lá, como em todo lugar, o clérigo fosse bem cuidado.
As pessoas, ao contrário da pátria- mãe de Lisle, eram notavelmente limpas e vestidas de uma maneira esplêndida. A roupa de linho deles era extremamente fina e sempre muito limpa; para tanto servia o efeito do sol e a água pura, tal que sua roupa era branca além da imaginação.
A hospitalidade dos rio-grandenses excedia tudo que ele tinha visto em outras partes do mundo; eles não se contentavam com a fria civilidade, a qual era dignificada em nome da hospitalidade nos outros países; eles cortejavam uma sociedade formada por estranhos, meramente para obter falsos benefícios e eles estavam sempre prontos a prestar serviços a quem se aproximasse. Mas sua hospitalidade ía além disto: os brasileiros seguiam os soldados nas ruas, convidando-os a suas casas e prestando favores a eles. Como os soldados retornaram estes atos de bondade será visto a seguir.
Além das forças regulares, toda a população masculina estava matriculada na milícia e formava , não os mais disciplinados, mas , de longe, o mais bem vestido corpo(militar) do mundo; seus coletes e calças eram geralmente de seda, assim como o forro dos seus casacos e tornavam sua aparência verdadeiramente elegante. As maneiras ordeiras e civilizadas desse regimento formavam um contraste gritante com o comportamento dos soldados britânicos que lá estavam. Estes heróis (os britânicos) estavam sempre discutindo, não só entre eles e com seus próprios oficiais, mas com seus benfeitores na cidade, a quem nunca deixaram de conceder cada epíteto abusivo do seu conhecimento do idioma português, como maneira (obviamente equivocada) de retornar as civilidades que receberam. Esta conduta irregular e brutal fez o General, o mais suave e humano homem que existia, aprisioná-los na casa dos guardas, ou melhor, tanto foi o seu comportamento ,que durante as 7 semanas que permaneceram ali eles nunca estiveram em total liberdade. Sua Excelência estava tão desgostoso com eles, que Lisle o ouviu repetidamente dizer que os mandaria para casa às suas custas ,para não lhes permitir ficar no país. Infeliz ficou Lisle em acrescentar que estes soldados foram visitantes tão frequentes à prisão que os habitantes lhe deram o nome de Quartel dos Ingleses.
(...)
Pelo dia 20 de setembro eles se prepararam para embarcar num navio para o Rio de Janeiro, o oficial Minchin, sua esposa, Black e Lisle, e as esposas dos oficiais e o resto da companhia.
O vento foi desfavorável e eles continuaram por 3 semanas na embocadura do porto e se divertiram atirando(caçando). Foi encontrado um vasto número de uma espécie de pássaro, chamado pelos portugueses, Quero-Quero, pelo seu grito; perdizes eram abundantes, mas havia abundância também de cegonhas, narcejas, papagaios do mar, etc. O grande número de abutres que abundava no lugar era uma benção aos habitantes que matavam todo ano um vasto número de gado selvagem para a retirada do couro. As carcaças que eram deixadas no mato deveriam, por sua putrefação, causar pestilência, se elas não encontrassem um fim rápido no apetite devorador daqueles pássaros vorazes.
Eles capturavam este gado de maneira singular: com laço e com boleadeiras, usadas por índios montados à cavalo,( descritas com espanto por Leslie.)
As boleadeiras foram descritas da seguinte maneira: o outro método(para pegar o gado) era com o uso de 3 bolas conectadas por uma tira de couro, 2 delas com aproximadamente 3 polegadas de diâmetro, e a outra , que era para ser segura na mão, com 2 polegadas. O caçador, quando queria fazer uso dela, pegava a bola menor na sua mão direita (levantava o braço acima da cabeça) e boleava as outras 2 sobre sua cabeça em movimento circular até atingir a velocidade própria e então ele atirava o dispositivo com tal destreza em direção às pernas do animal que estava sendo perseguindo, que ele quebrava ou se emaranhava conforme se conseguisse.
Usando estes artefatos, 300 a 400 mil cabeças de gado eram abatidas anualmente.²

Eles ficaram vários dias detidos por ventos contrários e era a opinião geral de todos que conheciam a costa, que o vento não mudaria até a mudança da lua, e com a ansiedade de Lisle pelo retorno à Europa aumentando, a sua natural impaciência e temperamento o estavam deixando infeliz. Ele, portanto, resolveu então pedir permissão ao Governador para ir por terra, a despeito do perigo e dificuldade para realizar tal expedição; mas antes de solicitar a permissão, ele consultou o Armador Black fazendo-o prometer que o acompanharia. Em consequência da resolução do Mr. Black, ele despachou um mensageiro até Sua Excelência, o General , que com sua usual gentileza e polidez, mandou uma resposta imediata permitindo sua ida quando ele assim o desejasse e que poderia levar consigo o que escolhesse.
Na manhã seguinte, ao raiar do dia, eles desembarcaram do navio para retornar à cidade. Quando eles deixaram o navio o vento estava contrário, mas justo quando eles atingiram a praia, ele mudou.  O piloto³  fez sinal para os navios, 10 ao todo, para seguirem. Lisle e Black tinham parado na beira do rio e com algum arrependimento viram os navios saindo em direção ao mar, e todos os navios, exceto o que eles recém tinham deixado, passaram a barra em segurança. O deles bateu em um banco de areia empurrado por uma violenta ventania surgida do nada e o piloto foi socorrê-los, mas vendo-o perdido, com o seu próprio bote e os lançados do navio tiraram todas as pessoas a bordo. O Sr e a Sra Minchin salvaram toda a sua propriedade, mas a do Sr Black e a de Lisle foram deixadas à bordo e depois do navio ser feito em pedaços, o infeliz Black estava de novo sem nada.
Mr Minchin atracou no lado norte do rio, que é muito amplo, e Lisle e Black estavam no sul, onde não havia botes para pegarem. Os Minchins se dirigiram ao bote do piloto e eles montaram os cavalos para irem à cidade.
Mais tarde, Minchin pediu permissão ao General para que pudesse ir por terra , mas Sua Excelência achou melhor recusar dizendo a ele que iria providenciar uma passagem em um dos próximos navios que navegaria para o Rio de Janeiro em poucos dias.

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Notas da pesquisadora:

 1-O relatório dos ingleses foi redigido de modo a omitir que Lisle também era, originalmente, um                      dos prisioneiros, o que demonstra que a confiança do governador de Montevidéo no relato dos                    ingleses era equivocada.
 2-O comentário consta do livro e não se sabe quais fontes Lisle usou.
 3-O piloto ou prático era funcionário do porto , qualificado e entendido nas águas costeiras, que ficava em um bote na saída da barra, orientando os navios na saída para o mar, pois era quem conhecia a correnteza e os bancos de areia que existiam.
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The Life of Major J. G. Semple Lisle, por J.G.Semple Lisle- 1797
London, Printed for W. Stewart, No. 194, Opposite York House, Piccadilly, 1799
O livro está disponível digitalmente , em versão original em inglês. https://archive.org/details/lifemajorjgsemp00sempgoog

Tradução livre feita pela pesquisadora.
*Algumas partes narradas aqui foram descritas por Guilhermino César, no seu livro Primeiros Cronistas do Rio Grande do Sul, de 1969.

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