COSTUMES DOS CARIJÓS (1605/1607- Padre
Jerônimo Rodrigues)
Relato de um missionário da Cia de Jesus, o padre Jerônimo
Rodrigues, que consta em Novas cartas jesuíticas (de Nóbrega a
Vieira-1940), de Serafim Leite, (Pg 228 até 232) disponível online em http://www.brasiliana.com.br/obras/novas-cartas-jesuiticas-de-nobrega-a-vieira/pagina/233/texto
Durante 2 anos , de 1605 a 1607, o padre permaneceu entre
estes indígenas, e possivelmente teria conhecido a região de Laguna e além dela, à
qual se refere várias vezes.
Aqui vai copiado parte da sua carta.
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COSTUMES DOS ÍNDIOS
“ Nosso exercício, logo em nos alevantando pela manhã, era
termos nossa oração, fazermos nossas doutrinas, dizermos nossas missas; e dali
até o exame tudo era matar pulgas e tirar bichos, sofrer descontos de carijós;
e o mesmo fazíamos às tardes, tirando algum tempo que tomávamos para rezarmos
algumas Ave-Marias, passeando ao longo da casa e de um quintalzinho, que
tínhamos, sem nunca sairmos, nem irmos espairecer a nenhuma parte, estando em
um campo, que somente víamos o céu e uns montes, que para quem tivesse muito
amor de Deus, não lhe faltaria em que contemplar. As casas dos índios eram por
todas cinco, depois de se ajuntarem alguns conosco; passavam meses e meses, que
não entrávamos nelas, por não ser necessário.
A terra em si não é má.
Pode ter em comprimento desde Santa Catarina até Taramiandiba(
Barra do Tramandaí), que está além de Boipitiba( Mampituba), onde os brancos
também vão resgatar, 40 ou 50 léguas, ao longo do mar e ao longo de umas
serras, que estarão do mar, meia légua, uma légua, até duas, em algumas partes;
e dali por diante começam os Arachãs, parentes destes, mas temo-los por melhor
gente, não na cobiça, mas na simplicidade. Estes, daqui dos Patos, são já muito
poucos e parece, não durarão muito, conforme a pressa (apresamento pelos brancos-nota
do autor) que os brancos lhes dão. Estes são parentes verdadeiros dos do campo,
aonde morreram nossos Irmãos, e parece virem antigoamente para o mar, onde se
comunicavam uns com os outros; mas de poucos anos para cá , se perdeu esta
comunicação, não se sabe o porquê; mas suspeitamos que estes lhes fizeram algum
agravo, e por isso não vieram mais. E como os que de lá vieram são já todos
mortos, os que deles procederam não sabem dar notícia, nem é gente que tenha
que saber para nada. É gente comumente de maior estatura que os de lá; andam
cobertos com pelejos de coiros de veados ou de ratos d’água¹, tamanhos como
pacas, mas não trazem estes pelejos por via de honestidade², senão por causa
dos muitos frios, e dos grandíssimos ventos que todo ano há. São do tamanho de
um cobertor pequeno; trazem-no às costas, e a dianteira descoberta. Quando não
faz tanto frio, andam nus. As mulheres, grandes e pequenas, trazem tipoias³, e
ainda que algumas vezes andam nuas, contudo, diante de nós, nem à igreja, vêm nuas,
ainda que seja uma menina de 4 anos. É a mais pobre gente que cuido há no
mundo, falo deste aqui, porque ele não tem coisa alguma, não tem algodão, nem
pele, nem redes, nem tipoias, nem arcos, nem frechas, tudo isso lhes trazem os
Arachãs; e daqui lhes vêm serem a mais preguiçosa gente que se pode achar,
porque desde pela manhã até noite, e toda a vida, não têm ocupação alguma: tudo
é buscar de comer,[e] estarem deitados nas redes. Em todas essas 50 léguas não
há terra preta, nem vermelha, nem cá a vi, tudo são areais e de areia mui
miúda. E ainda que há algumas serras e oiteiros, também são de areia , mas dá
tudo o que lhe prantam. E como as árvores são pequenas e pau mole, facilmente
fazem a sua roça, acabante de a queimarem, logo prantam sem fazerem coibara4,
nem fazerem covas para a mandiiba5. Mas com o cabo de cunha, com que derribam a
roça, fazem um buraquinho no chão e ali metem o pau da mandiiba; e muitas
vezes sem lhe fazerem buraco. E para uma índia meter um pau na terra dá sete ou
oito ou mais pancadas com ele na terra ; e assim, machucado e ferido, o mete.
Tem o ano repartido em 4 partes, 3 meses comem milho, outros 3
favas e abóboras , outros 3 alguma mandioca, e os outros 3 comem farinha de uma
certa palmeirinha, que é assaz de fome e miséria. E tudo isto lhes nasce de
pura preguiça, e de se contentarem com comerem quanta sujidade há. As abóboras,
aipins, batatas, comem com tripas, pevides6 e casca,e tudo quentíssimo. E por
nenhuma via se lhes há de perder cousa que no chão lhes caia, ainda que seja um
grão de milho ou feijão, ou grão de farinha: tudo hão de alevantar e comer,
quer seja seu, quer alheio. Nenhum comer comem por gosto, senão por encher a
barriga. E assim todos têm dentes danados7 por comer tudo quentíssimo e cheio
de areia. Não comem mingau, nem pimentas, nem juquifaia, nem sal, com estarem
junto do mar, e se lho dão do reino, comem-no. O peixe e a carne comem
malcozido; cozem o peixe sem escamar, e sem-no lavarem, cozido em água chilra8.
E é o peixe de cá ordinariamente tão magro que se o lançarem a uma parede
pegara. Os pássaros, mal depenados, abrem-nos pelas costas, e sem os lavarem os
põem sobre as brasas. E assim os comem. Há muita caça, mas de preguiça a não
vão matar. Os dias passados indo à caça pelo campo, mataram duas antas; e logo
lá, cada um por onde pode corta; e pedindo-lhe um índio um pedaço para nós,
respondeu-lhe o senhor da carne:
- Também eu tenho boca como os padres.
E não-na deu.
VIDA SOCIAL
De nenhuma qualidade convidam uns aos outros, nem
ainda aos que vêm de fora. E assim quem há de caminhar há mister que leve com
que compre o que há de comer, porque nem aos próprios parentes e da sua casa
hão de dar nada sem troco. E dizem:
- Vão-nos eles buscar.
Não se ajudam uns
aos outros; e bem pode um estar com um pau às costas, arrebentando, sem nenhum
o ajudar, antes se estão rindo. E se lhes dizeis:
- Vai ajudar aquele.
Dizem-vos:
- Tenho preguiça.
No vício da carne (sexo) são sujíssimos, têm muitas mulheres, têm
as sobrinhas por mulheres, duas irmãs, suas madrastas, as filhas das mulheres,
suas enteadas, têm também por mulheres, as netas, filhas de suas verdadeiras
filhas, e alguns têm por mulheres as próprias filhas. E o que mais espanta [é]
haver índia que têm dous maridos, e destas muitas; e ambos estão juntos com
elas. E porque um destes se apartou de uma para casar com outra, o consorte
teve mão nele para que a mulher lhe desse umas poucas já que se apartava dela
para tomar outra. Outros há que deixam andar as mulheres por onde e com quem
elas querem. Dizem que são angaturamas9. E por isso não fazem nherana. E outros
que têm as próprias filhas, que fizeram, por mulheres.
FALTA DE LIMPEZA
Em todas as cousas são sujíssimos. Na própria fonte,
donde bebem, lavam os pés, lavam peixe e as redes. E não há uma hora que umas
meninas foram à fonte, que está aqui pegada com o nosso tejupar10; e, vendo-as
eu tornar sem água, por curiosidade fui ver a fonte, e estava cheia com uma
sujíssima tipoia. E por aqui podem ver suas limpezas. Suas roupas, redes e
tipoias lavam desta maneira: botam tudo no chão ou em cima de alguma pedra; e
em cima uma pouca de cinza. E com água fria molham o que querem levar. E com os
pés pisam muito bem, nem mais nem menos, do que pisam as uvas em Portugal e mais
depressa. E depois a deitam a enxugar cheia de cinza. O seu fazer da farinha é
ainda mais sujo; e se o não víramos com os olhos, muitas vezes, não-no
crêramos, posto que nesta matéria de sujidade tudo se pode crer destes. E assim
diz o padre que são muito piores que os tapuias.
Não comem farinha ralada, nem tem espremedores, nem
tatapecoabas, nem o sabem fazer. A mandioca, depois de estar podre, trazem-na
da roça. E fazendo uma cova na areia, do tamanho de meio barril, fora da casa,
põe-lhe umas folhas debaixo e ali a botam; e toda a que cai na areia com a
mesma areia a botam com a outra; e quando cansam põem o pilão na areia;
tornando a socar leva uma boa quantidade de areia, com outras sujidades que não
são para escrever; e coberta com umas folhas e com areia a deixam daquela
maneira, e pouco a pouco a vão tirando; e, pisando-a em um pilão, a desfazem e
põem em uma urupema ao sol; e depois a cozem, mal cozida, e às vezes depois de
cozida, vem pedaços tamanhos como a cabeça dum dedo, crus, que parecem
minocurueras; e com tanta areia, que se não fosse a necessidade, ou se houvera
outra, ainda que não tão boa, se não comera.
(...)”
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Notas da pesquisadora:
1- Provavelmente capivaras pela comparação de tamanho com as pacas.
2- Termo usado com o sentido de vergonha
3- As mulheres indígenas de algumas tribos usavam uma espécie de
vestido de algodão chamado tipói, que é também o nome dado à tira onde seguram
os filhos.
4- Coivara, termo que descreve técnica primitiva de plantação.
5- Mandiiva, mandiiba, mandioca.
6- Termo antigo para sementes.
7- Estragados
8- Insípida, sem sal.
9- Pessoa nobre, honrada
10-Palhoça, cabana
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